A Casa que Jack Construiu (2018)

Lars von Trier não faz cinema para agradar. Ele não quer nos entreter, não quer nos salvar, não quer nos convencer de nada. O que ele quer, na real, talvez nem ele saiba. No entanto, é certo que ele esculpe seus filmes com a lâmina de uma obsessão: a de cutucar as feridas humanas.

Assistir a um filme dele é como entrar num campo minado emocional, onde cada passo é um risco calculado de dilaceração. Não tem zona de conforto. Tem vértice, ruína, desamparo e, ironicamente, beleza. Porque é isso que ele faz: mergulha na lama e sai de lá com uma flor estranha entre os dentes.

Em A Casa que Jack Construiu (2018), Trier abandona qualquer verniz de humanidade reconfortante. O que realmente existe aqui é um desfile de brutalidade coreografada com precisão — quase matemática. Jack mata com método. Ele observa, reencena e, entre uma morte e outra, nos leva para um inferno ensaístico, onde ele e um misterioso interlocutor (Virgílio, sim, o guia de Dante na Comédia Divina) debatem arquitetura, ética, pintura e o conceito de arte como desculpa para o mal.

A narrativa é dividida em cinco “incidentes” — cada um mostra um assassinato cometido por Jack, com graus crescentes de perversidade e sofisticação — quase como se ele estivesse ensaiando, testando formas, aprimorando seu “ofício”. Não é por sadismo barato, mas por uma espécie de sadismo consciente. A estrutura é didática e circular, como um manual de criação artística macabra.

Aqui, Trier tem uma relação quase erótica com o sofrimento. Não o sofrimento qualquer, mas o que revela. O sofrimento como bisturi da verdade — especialmente com suas personagens femininas, que sangram em tela porque carregam os paradoxos que ele próprio não entende em si mesmo. Ele ama e odeia essas mulheres. Talvez porque, no fundo, se veja nelas. Seus filmes muitas vezes começam com promessas e terminam em colapso — e não por falta de direção, mas porque sabemos que a destruição faz parte da estrutura.

O filme pulsa entre beleza e horror. Os assassinatos são mostrados sem cortes, de forma seca, incômoda, às vezes até tosca, para depois serem revisitados com um lirismo quase épico. Essa dualidade cria um paradoxo: o espectador é convidado a se encantar e se enojar ao mesmo tempo.

A câmera instável e nervosa hesita como se tivesse medo. É uma personagem inexperiente, errática, quase ansiosa. Parece que treme junto com quem filma, como se tivesse medo daquilo que está capturando. Se esquiva, invade, hesita. Ela respira com os outros personagens e te joga lá dentro, sem filtro, sem ensaio, sem glamour.

Além disso, a estética balança entre o realismo doentio e o sublime operístico, com interlúdios virtuais que flertam com o brega e o clássico, como David Bowie e Delacroix, com o inferno e o Louvre. Neste ponto, Von Trier se autocita, se ironiza, se autoflagela. E, de quebra, esfrega isso na nossa cara.

Jack é a mente de Lars von Trier colocada sob julgamento. Ele constrói, sim, uma casa. Uma casa literal, mas também simbólica. Feita de corpos. De ideias mortas. De tentativas falhas de transformar o horror em beleza. Ali, canaliza sua frustração criativa na elaboração meticulosa de assassinatos. Ele fotografa seus crimes, os organiza e quer expô-los — porque quer ser entendido.

A chave do personagem? A confusão entre o criador e o destruidor: ele não vê diferença entre cortar um seio e esculpir mármore. Como se fosse tudo matéria. Tudo forma. Jack não é só vilão — ele é a distorção máxima do artista que se crê acima do mundo.

Talvez o ponto mais incômodo de A Casa que Jack Construiu seja esse: o filme não julga Jack. Tampouco o absolve. Ele o ouve e nos obriga a ouvir também. É um gesto profundamente antinarrativo. Vai contra a lógica do cinema tradicional, onde o mal precisa de punição e o artista precisa de redenção. Von Trier recusa ambos. Ele entrega o monstro de bandeja, mas não explica. Não fecha com lições. O que ele faz é mais cruel porque o pacto aqui é claro: ele mostra o horror, nós consentimos em vê-lo.

A Casa que Jack Construiu é a antiobras-primas das obras-primas. Um filme feito para derrubar o pedestal da arte e revelar os vermes embaixo. No fim, é o próprio Von Trier olhando no espelho, encontrando Jack — e nos convidando a morar entre os escombros.


Vortex (2021)

Vortex (2021) é um filme dramático e introspectivo, dirigido e escrito por Gaspar Noé, um cineasta conhecido por suas obras polêmicas e extremas, como Irreversível (2002), Love (2015), Climax (2018) e Lux Æterna (2019).

A trama do filme explora profundamente as fragilidades de um casal de idosos. Dario Argento interpreta um escritor renomado, enquanto Françoise Lebrun assume o papel de sua esposa, uma psiquiatra aposentada. Eles vivem juntos em um apartamento em Paris, enfrentando os desafios do envelhecimento: ele com uma condição cardíaca debilitante e ela, lutando contra a demência. Essas dificuldades acabam por afastá-los cada vez mais, levando-os a perder progressivamente o contato com a realidade.

O filho do casal, Stéphane, interpretado por Alex Lutz, tenta desesperadamente ajudar. Vivendo separadamente com seu próprio filho e lutando contra um passado de abuso de drogas, ele implora aos pais que considerem se mudar para uma moradia assistida. No entanto, o pai recusa-se a abandonar o apartamento cheio de livros e memórias de tempos mais felizes.

A situação piora quando o marido sofre um ataque cardíaco e desmaia. Na manhã seguinte, a esposa o encontra caído no chão e, em um momento de confusão, liga para seu filho. Levado ao hospital, ele não sobrevive e morre. Após a morte do marido, a realidade de solidão da esposa se intensifica, o que é visualmente representado pela mudança nas telas divididas do filme. Stéphane, devastado pela perda, busca consolo nos braços da mãe. De volta ao apartamento, ela vaga sem rumo, enquanto seu filho, em um momento de desespero, recai no uso de drogas.

O filme culmina com a morte pacífica da esposa, uma tragédia que parece ter sido induzida por um acidente com gás na cozinha. Em seu funeral, Stéphane relembra os últimos meses dedicados a cuidar dos pais e, em uma apresentação de slides, momentos da vida de sua mãe são exibidos, proporcionando um vislumbre de tempos mais alegres. Kiki, curioso e confuso, pergunta ao pai se os avós têm um novo lar agora, ao que Stéphane responde que lares são para os vivos.

Gaspar fez uma transição ousada para o “cinema da lentidão” com este trabalho além de empregar uma abordagem cinematográfica distintiva ao dividir a tela em duas partes, assim como em Lux Æterna (2019), e o diálogo completamente improvisado, atribuindo ao filme uma sensação de autenticidade crua. Estas técnicas não apenas enaltecem a separação física e emocional do casal, como também captura o lento e inexorável desmoronamento de suas vidas e mentes. 

Vortex é um testamento da capacidade de Gaspar Noé de evoluir e desafiar tanto a si mesmo quanto seu público, criando uma obra que é ao mesmo tempo profundamente pessoal e universalmente ressonante. Com uma abordagem cinematográfica única e performances intensamente autênticas, o filme se estabelece como um dos seus trabalhos mais reflexivos, explorando com sensibilidade as nuances da velhice, da memória e do inevitável fim da vida. 

Vortex não é apenas um filme, mas uma experiência imersiva que convida o espectador a confrontar as fragilidades humanas com um olhar brutalmente honesto e, ao mesmo tempo, profundamente empático.